STF começa a analisar compatibilidade da condução coercitiva com a Constituição
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar, na sessão desta quinta-feira (7), as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 395 e 444, nas quais se discute a compatibilidade da condução coercitiva de investigado para interrogatório com a Constituição Federal de 1988. O relator, ministro Gilmar Mendes, apresentou seu voto reafirmando os fundamentos apresentados na liminar por ele deferida – que proibiu a realização da medida –, no sentido de que a condução coercitiva representa restrição à liberdade de locomoção e viola a presunção de não culpabilidade. O julgamento foi suspenso e deve ser retomado no início da sessão da próxima quarta-feira (13).
As ações foram ajuizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), respectivamente, para questionar o artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP) e a prática judicial de determinar a condução coercitiva de imputados para depoimento. O dispositivo legal, anterior à Constituição de 1988, prevê que se “o acusado não atender à intimação para o interrogatório, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Nas ações, o PT e a OAB apontam que a prática resulta em lesão a diversos preceitos fundamentais.
Em dezembro, o relator concedeu liminar, submetida a referendo do Plenário, para proibir a realização de conduções coercitivas de investigados para interrogatório. Na sessão desta quinta-feira, os ministros começaram a analisar o mérito das ações.
Autores
O advogado Thiago Bottino do Amaral, que falou na tribuna em nome do PT, afirmou que a condução coercitiva é prática “violenta e abusiva” ,que viola o preceito fundamental da vedação da autoincriminação. Para ele, esse mecanismo, se autorizado, permitirá que a polícia e o Ministério Público tentem extrair de um cidadão, que não tem obrigação de depor ou falar, uma confissão. “É feita com intimidação, medo, susto, com a finalidade de desestabilizar a pessoa e reduzir sua resistência para dificultar o exercício do silêncio e induzir o cidadão a abrir mão de seu direito de não prestar depoimento”, disse.
Já para o representante da OAB, Juliano José Breda, a condução coercitiva, como praticada atualmente, viola o direito à ampla defesa, que deve ser garantido desde o início da investigação. Na prática, afirmou, a condução impede que o cidadão seja devidamente assistido, uma vez que os clientes não são avisados previamente e seus defensores não têm acesso prévio aos autos.
PGR
O vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, ao se manifestar em nome da Procuradoria-Geral da República, afirmou que a condução coercitiva, prevista no artigo 260 do CPP, é compatível com a Constituição Federal de 1988, desde que assegurado ao acusado o direito ao silêncio, a ampla defesa e a presunção de inocência. “O que viola a Constituição são os moldes em que muitas vezes são realizadas, onde não são assegurados os direitos do investigado que ainda é tratado como objeto e não como sujeito de direito”, afirmou.
Amici Curiae
O advogado Guilherme Ziliane, que falou em nome do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), defendeu que o interrogatório é um direito garantido e não deve ser tratado como uma imposição. Para ele, o propósito é convencer o indivíduo a falar e colocá-lo em posição de fragilidade. “O investigado virou passível de busca e apreensão”, concluiu.
O artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP), para o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), é inconstitucional e imoral. “Passou a ser utilizado por alguns poucos juízes, de maneira seletiva e episódica, como instrumento de pressão para transformar cidadãos protegidos pela presunção de inocência em dóceis e úteis colaboradores”, destacou o representante do instituto, o advogado Mauricio Dieter. Nesse contexto, segundo ele, o direito constitucional de ficar em silêncio “é reduzido ao meramente simbólico, não sendo efetivamente garantido”.
Segundo Leonardo Sica, representante da Associação dos Advogados de São Paulo, se o investigado pode ficar em silêncio, a finalidade de levá-lo a força para depor é intimidá-lo, constrangê-lo e forçá-lo a renunciar ao seu direito constitucional. “É forma de exercício de poder sem controle, uso de força insubmersível ao controle judicial, modo de uso de força estatal impassível de ser controlado pelo Poder Judiciário”.
Para o advogado Técio Lins e Silva, representante do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), o instrumento da condução não pode coexistir com a Constituição cidadã. O defensor lembrou dos abusos de autoridade e violência nas prisões e procedimentos realizados durante a ditadura. Os procedimentos aplicados nas conduções, de acordo com Técio, “são absolutamente impróprios à luz do que se espera de um processo penal democrático”, disse.
Relator
Em seu voto, o ministro reafirmou os argumentos que basearam sua decisão cautelar, no sentido de que a condução coercitiva para interrogatório representa restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, obrigando a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal, pontuou o relator.
As conduções coercitivas para interrogatório, que, segundo o relator, têm se disseminado especialmente no curso da investigação criminal, representam restrição grave a direito individual. Muito embora alegadamente fundada no interesse da investigação criminal, essa restrição severa da liberdade individual, para o ministro Gilmar Mendes, não encontra respaldo no ordenamento jurídico.
O ministro teceu diversas críticas a operações policiais em curso no Brasil nos últimos tempos. A título de exemplo, o ministro revelou que, no âmbito da operação Lava-Jato, foram realizadas 227 conduções coercitivas até 1º de março de 2018. Trata-se de um novo capítulo da espetacularização da investigação, que ganhou força no início deste século, disse o ministro.
Mendes também criticou as entrevistas coletivas que costumam ser dadas por policiais e membros do MP nos dias de deflagração das operações. Para o relator, estas entrevistas são inequívocas violações aos princípios da presunção da inocência e da dignidade da pessoa humana. Para o ministro, a divulgação dos atos relativos às operações deve ser regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O ministro também questionou as prisões preventivas prolongadas, que, para ele, são outra forma de tortura, e os constantes vazamentos de informações sigilosas dos inquéritos.
Restrição a direitos fundamentais
Para o ministro, a condução coercitiva é uma clara restrição aos direitos à liberdade de locomoção e à presunção de não culpabilidade. Neste ponto, Gilmar Mendes lembrou que existe vedação expressa a se tratar pessoas não condenadas como culpadas. E, no caso das conduções coercitivas, segundo o relator, o conduzido é claramente tratado como culpado. Além disso, também são afetados outros direitos, como o da não autoincriminação, o direito de defesa – inclusive na dimensão da necessidade de que tenha assistência de advogado – e o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
O ministro explicou que as operações costumam usar o elemento surpresa, apanhando o imputado às 6 horas da manhã, normalmente acompanhada das redes de TV. Para Gilmar Mendes, a estratégia parece ter o propósito de nulificar, exatamente pelo efeito surpresa e pelo constrangimento, o exercício do direito de se fazer acompanhar de seu advogado e de não se autoincriminar. Para o relator, ao invés de ser conduzido coercitivamente, o investigado poderia ser intimado a comparecer à repartição pública. “Ainda que se vislumbrasse espaço para a condução coercitiva para interrogatório, esse seria uma excepcional restrição da liberdade do acusado. Nesse contexto, não vejo como, mesmo quem considere a condução possível, se possa deixar de exigir a rigorosa observância da integralidade do artigo 260 do CPP, ou seja, intimação prévia para comparecimento não atendida”.
O acusado está autorizado, por lei, a se ausentar do interrogatório, lembrou o relator. Assim, se ele não é obrigado a comparecer ao interrogatório, até como estratégia de defesa, não pode ser obrigado a comparecer coercitivamente. Tendo em vista que a legislação consagra o direito de ausência ao interrogatório, a condução coercitiva para tal ato viola os preceitos fundamentais previstos no artigo 5º (caput e incisos LIV e LVII) da Constituição, afirmou Mendes.
O relator ressaltou que as ADPFs em julgamento discutem apenas a questão da condução coercitiva de imputados ou réus para interrogatórios, e não de outras pessoas, como testemunhas ou réus, para atos diversos do interrogatório. Assim, o ministro votou pela procedência das ações para pronunciar a não recepção, pela Constituição Federal, da expressão “para o interrogatório”, constante do artigo 260 do CPP e declarar a incompatibilidade com a Constituição da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatórios, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e da ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
SP,MB/CR,AD
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Fonte: STF